— Primeiro, eu deveria me apresentar.
— …Uhh, primeiro, por que você estava pendurada ali…?
— Meu nome? É Index.
— Esse é um nome falso, não importa o quanto você olhe pra ele! Você é um índice? Tipo o do final de um livro?!
— Como pode ver, sou membro da Igreja. Isso é importante. Ah, não a do Vaticano, mas dos Puritanos da Inglaterra.
— Eu não faço a menor ideia do que isso significa, e você tá ignorando minha pergunta?!
— Humm, estou falando de Index… Ah, se quiser meu nome mágico, é Dedicatus545.
— Alô? Alôôô? Que tipo de alienígena tá falando nessa frequência?
Kamijou já não tinha mais paciência pra ouvir aquela garota e começou a cutucar o ouvido com o dedo mindinho. Ela passou a roer a unha do polegar. Hábito nervoso?
Por que exatamente estamos sentados em volta da mesa de vidro como se fosse uma entrevista de emprego?
Ele precisava sair logo, ou se atrasaria pras aulas de recuperação de verão. Mas também não podia simplesmente deixar essa maluca sozinha no quarto.
O pior era que a garota misteriosa de cabelo prateado, que se chamava Index, parecia ter gostado tanto do lugar que já estava rolando pelo chão como se fosse a casa dela.
Isso é só mais uma expressão da minha má sorte? Se for, isso já passou dos limites.
— Ah, e eu ficaria muito grata se você enchesse esse “índice” aqui com comida.
— Por quê?! Pra que aumentar seus parâmetros?! Se eu acionei alguma bandeira estranha e fui parar direto na rota da Index, então me mata agora!
— Uhh… Isso é gíria? Desculpa, acho que não entendi o que você quis dizer.
Claro, ela era estrangeira. E não parecia entender nada da cultura otaku japonesa.
— Se eu der três passos fora daquela porta, vou morrer de desnutrição.
— …E eu deveria me importar com isso por quê?
— Quando isso acontecer, vou usar minhas últimas forças pra deixar uma mensagem do lado do meu cadáver. Um retrato seu.
— O quê…?!
— Se alguém me ajudar antes de eu morrer, talvez eu diga que fui mantida em cativeiro neste quarto e abusada até me tornar só um casulo de pessoa… E vou contar que você me obrigou a usar essa roupa também.
— O quê que você disse?! Até que você entende bastante da cultura otaku daqui, né?!
— ?
Ela inclinou a cabeça, como um gatinho se olhando no espelho pela primeira vez.
Que humilhação. Tá se fazendo de sonsa. Sinto que só eu fui contaminado aqui.
Kamijou marchou pra cozinha. Tá bom, tá bom! Eu vou fazer!
O conteúdo da geladeira estava estragado de qualquer forma — só lixo. Mesmo que ela comesse aquilo, não ia afetar sua carteira. Vai dar tudo certo se eu esquentar isso.
Jogou o que restava de comida numa frigideira e começou a cozinhar algo que lembrava um refogado.
Agora que pensei… de onde exatamente essa garota veio?
Havia estrangeiros vivendo na Cidade Acadêmica, claro.
Mas ela não tinha o “cheiro” típico dos residentes. Ainda assim, seria muito estranho se fosse uma completa outsider.
A Cidade Acadêmica era conhecida como uma “cidade de centenas de escolas”, mas era mais fácil pensar nela como um internato gigante. Ela ocupava um terço de Tóquio, e era cercada por uma espécie de muralha estilo Muralha da China.
Não era exatamente uma prisão, mas também não era o tipo de lugar onde você “acidentalmente” entra e se perde.
Pelo menos, era assim que parecia pro mundo de fora.
Na prática, universidades de engenharia tinham lançado três satélites no espaço, que ficavam constantemente vigiando a cidade.
Quem entrava ou saía era escaneado completamente.
Se alguém suspeito não batesse com os dados do portão, os Anti-Skills ou os membros do Judgment de todas as escolas entrariam em ação num piscar de olhos.
Embora… ontem a garota elétrica conjurou umas nuvens de tempestade. Talvez tenha sido assim que ela passou despercebida, pensou Kamijou.
— Uhm, então por que você estava pendurada pra secar na minha varanda?
Kamijou insistiu, jogando shoyu no refogado maligno.
— Eu não estava pendurada pra secar, tá?
— Então o que aconteceu? Foi o vento que te trouxe até aqui?
— …Talvez algo assim.
Era só uma piada. Ele parou de mexer a frigideira e virou-se pra ela.
— Eu caí. Na verdade, eu estava tentando pular de um telhado pro outro.
Telhado?, pensou, olhando pro teto.
A vizinhança era cheia de dormitórios estudantis baratos.
Prédios esbeltos e idênticos de oito andares, lado a lado.
Dava pra ver da varanda que só havia uns dois metros entre cada edifício. Com uma boa corrida, até dava pra tentar o salto…
— Mas os prédios têm oito andares. Um passo em falso e você ia direto pro inferno.
— É. Sabe o que dizem — não colocam lápides pra suicidas.
Kamijou não entendeu muito bem o que ela quis dizer com isso.
— Eu não tinha escolha. Não tinha outro lugar pra onde correr naquela hora.
— Pra… correr?
Kamijou franziu a testa, sem querer, enquanto Index respondia com simplicidade:
— Aham.
— Eu estava sendo perseguida.
— …
Sua mão parou de balançar a panela quente.
— Eu tava conseguindo pular entre os prédios, mas no meio de um salto, levei um tiro nas costas.
A garota chamada Index falava como se estivesse rindo.
— Desculpa. Parece que fiquei presa na sua grade enquanto caía.
Não havia vergonha nem sarcasmo na voz dela.
Ela sorriu como se aquilo fosse perfeitamente normal.
— Você levou um tiro…?
— Sim? Ah, não se preocupe, não me machuquei. Essas roupas também têm uma barreira de proteção.
O que é uma “barreira de proteção”? Um colete à prova de balas?
A garota girou para mostrar a roupa.
Ela realmente não parecia ferida.
Será que tinha sido mesmo baleada? Kamijou achava muito mais provável que tudo aquilo fosse uma pilha de mentiras, meias-verdades e delírios.
Mas…
Pelo menos era verdade que ela estava pendurada na varanda do sétimo andar.
Hipoteticamente, se tudo que essa garota dizia fosse verdade…
Então quem tinha atirado nela?
Kamijou refletiu.
Pensou no tipo de coragem necessária pra sair saltando pelos telhados de prédios de oito andares.
Em como a varanda do sétimo andar interrompeu sua queda por sorte.
No que ela quis dizer com “desmaiei”.
— Eu estava sendo perseguida — ela tinha dito.
Ele lembrou do sorriso estampado no rosto dela quando disse isso.
Kamijou não fazia ideia do que estava acontecendo com Index.
E nem entendia metade do que ela dizia.
Mesmo que ela explicasse tudo de uma vez, ele provavelmente não entenderia nem a metade.
E talvez nem quisesse entender.
Mas uma coisa era verdade.
Ela tinha ficado pendurada na varanda do sétimo andar.
Se tivesse errado o pulo, teria virado mancha no asfalto.
Essa realidade o atingiu com tanta força que seu peito apertou.
— Comida.
Index apareceu de repente atrás dele, com a cara espiando pela lateral.
Ela sabia falar japonês, mas… não sabia usar hashi?
Segurava os pauzinhos como se fossem uma colher, e olhava fixamente pro conteúdo da frigideira com olhos brilhando de empolgação.
Comparar a expressão dela com a de um gatinho recém-resgatado da chuva não seria exagero.
— ………………………………………Ehh.
O que estava na panela era algo como um refogado (tóxico) de vegetais — basicamente, composto orgânico frito.
Hmm. Olhando pra essa menina faminta na minha frente…
Kamijou sentia o “Anjinho Kamijou” (normalmente acompanhado do Diabinho Kamijou) se contorcendo por dentro.
— Uh, ahh! M-mas sabe, se você tá com tanta fome assim, em vez dessa gororoba de solteiro que eu joguei na frigideira, a gente podia fazer direito e ir num restaurante ou pedir alguma coisa!
— Eu não consigo esperar tanto, tá bom?
— …Ugh!
— E além disso, nem parece ruim. Você cozinhou pra mim sem querer nada em troca. Então não pode ser ruim, certo?
Dessa vez, ela sorriu ainda mais doce, de um jeito realmente digno de uma freira.
O estômago de Kamijou se revirou como um pano sendo torcido.
Index o ignorou e, com os hashis ainda no punho, começou a enfiar a comida na boca.
Mastiga, mastiga.
— Viu? Não tá ruim.
Mastiga, mastiga.
— …Ah, é mesmo.
— Dá pra sentir que você colocou um toque azedinho pra me revitalizar. Mandou bem.
— Ehh?! Azedo?!
Glub, glub.
— É. Mas eu gosto de azedo. Obrigada. Sabe, você é meio que um irmão mais velho.
Ela sorriu. Tava comendo tão vorazmente que tinha até um broto de feijão grudado na bochecha.
— …Uhh…Whooooooaaaaaahhh!
Vwapp!!
Ele arrancou a frigideira das mãos dela na velocidade do som.
O rosto de Index ficou a imagem da decepção.
Kamijou fez uma promessa a si mesmo: Serei o único a ir pro inferno por isso.
— Você também tava com fome?
— …Hã?
— Se não estiver, então acho que devia parar de brincadeira e me deixar comer.
Index mordiscava a ponta dos hashis enquanto olhava pra ele com olhos brilhantes.
Kamijou teve uma revelação.
Deus falou com ele:
“Você deve assumir a responsabilidade e comer isso.”
Dessa vez, não era a má sorte o problema.
Ele mesmo tinha cavado essa cova.