Passei o dia seguinte ao meu retorno passando um tempo com Fina e Shuri, o que significava que no outro dia era hora de ir para Mileela com Cliff. Então lá estava eu, em frente à casa da ursa, esperando Cliff e—talvez—o mestre da guilda comercial.
O que estava tudo bem, eu acho… mas se ela assustasse minhas ursas, teria que seguir a pé ou ficar para trás. Eu já não gosto muito de gente, e não vou fazer minhas ursas carregarem alguém que as deixe nervosas.
— Desculpe a demora — disse Cliff. Milaine caminhava ao lado dele.
— Não foi tanto tempo, mas, ah… o que a Milaine tá fazendo com você? — Parecia estranho ver aqueles dois juntos. Mas sei lá, talvez eles saíssem juntos o tempo todo quando eu não estava olhando.
— Receio não entender — disse Cliff. — Milaine é a mestra da guilda comercial desta cidade. E—espere um minuto, vocês duas já não se conhecem?
— Milaine, você é a mestra da guilda? — Essa era nova pra mim.
— Ah, não te contei? — Milaine levou a mão à boca, fazendo um pequeno suspiro fofo demais para ser verdadeiro. Yep, ela definitivamente não tinha contado de propósito. Eu a encarei com suspeita. — Só estou brincando. Honestamente, não houve um bom momento para comentar. Eu ser mestra da guilda ou funcionária comum não muda nossa relação, certo?
Claro que ela “esqueceu”. Ela com certeza se divertiu escondendo isso.
— Milaine, quantos anos você tem mesmo? — Ela parecia jovem demais para ser mestra da guilda, mas talvez—tipo a Ellelaura—sua aparência enganasse.
— Que rude. Estou nos meus vinte e poucos anos; dá pra ver, não? — disse ela com orgulho.
O que cobria dez anos inteiros, e existe uma diferença gigante entre vinte e vinte e nove. Ela devia estar no fim dos vinte e não queria admitir. Ainda assim, ser mestra da guilda nessa idade era impressionante.
Mas… pensando agora, até que fazia sentido. Quando vendemos os ovos no atacado e abrimos a loja, Milaine tomou várias decisões por conta própria. Decisões que uma funcionária normal não poderia tomar. Ela dizia “tá tudo bem” ou “deixa comigo” o tempo todo. Além disso, não era qualquer Zé Ninguém que podia recusar vender ovos ao senhor feudal e ainda sair ileso. Agora que eu pensava nisso… tinha muita coisa suspeita acontecendo. E o tempo todo ela me distraía com aquela carinha de garotinha. A audácia!
Cliff se virou para nós, claramente irritado:
— Não me importa se você tem vinte, trinta ou até quarenta. Vamos logo.
— E-Espere um segundo — gaguejou Milaine. — Tem uma diferença enorme entre vinte e trinta, e… quarenta?! Como ousa? Deve fazer muito sucesso com as mulheres.
— Não preciso disso. Aliás, Milaine, eu sou muito bem casado e tenho filhos.
Ele não estava errado — sua esposa Ellelaura era absurdamente bonita, e suas filhas Noa e Shia eram adoráveis. A não ser que ele fosse muito mais pateta do que parecia, não precisava se preocupar com “sucesso com as mulheres”.
— Cliff — disse Milaine — você tá tentando arrumar briga comigo?
— Estou apenas afirmando fatos.
A tensão se acumulava ali, bem na frente da casa da ursa. Os dois encaravam um ao outro como gato e cachorro prontos para brigar! Eu não conseguia decidir qual era qual, mas quando a briga começasse—ah, pera.
Certo, tínhamos coisas importantes pra resolver.
— Milaine — falei — você vai para Mileela?
— Bem, existe o escândalo na guilda comercial pra resolver, e quero ver se essa história de túnel é real. Se existir um túnel, poderemos começar a negociar com Mileela, e nada disso pode ser organizado sem a presença da mestra da guilda. Que sou eu. — Ela ergueu o queixo com orgulho.
Eu me segurei para não revirar os olhos.
— Mais importante — continuou ela — é a chance de montar nas suas ursas famosas! Eu iria mesmo se tivesse que cabular o trabalho.
Pera aí… sempre que eu a via na guilda, ela parecia estar de folga na recepção. Será que ela realmente trabalhava… ou só descansava o dia todo?
— Não cabule trabalho — reclamei. — Faça seu serviço!
— Exatamente. Ir a Mileela é meu trabalho, não é? — disse ela com um sorriso vitorioso.
Cliff piscou. — Uh… não posso dizer que você está errada…
Ele me lançou um olhar derrotado. Ele não tinha saída.
— Excelente — disse Milaine, me agarrando pelos ombros e me puxando. — Yuna, posso conhecer suas ursas de perto agora?
Cliff seguiu atrás, ainda surpreso. Bem, ela estava fazendo o trabalho dela, então… acho que tava tudo certo?
Por mim, tudo bem.
Ao sairmos da cidade, os guardas ficaram boquiabertos. Claro, qualquer um ficaria ao ver o senhor feudal e a mestra da guilda andando juntos casualmente. Eu só esperava que eu não fosse mais um motivo pra espanto.
Já do lado de fora, estendi minhas luvas-ursa e invoquei Kumayuru e Kumakyu.
— As famosas ursas… — Milaine apertou os olhos, como se elas pudessem desaparecer a qualquer momento.
— Cliff, você vai na Kumayuru. Milaine e eu iremos na Kumakyu.
— Kumayuru era a preta, certo? — Cliff já sabia só pelos nomes estúpidos que eu dei.
— Yuna — disse Milaine — os nomes delas são Kumayuru e Kumakyu?
— A preta é a Kumayuru. A branca é a Kumakyu.
Milaine riu. — Esses nomes são muito a sua cara, Yuna.
— O que isso quer dizer?
— Só que combinam com a aparência delas e são fofos.
Ela sorriu como quem sabe demais.
Kumayuru e Kumakyu? Fofos? Sei não… mas eu gostava deles. Se eu tivesse mais talento para nomes, talvez fossem melhores, mas não vejo necessidade de nomes épicos quando você já tem duas ursas gigantes, fofas e poderosíssimas.
Milaine se aproximou da Kumakyu.
— Então, Kumakyu, conto com você. — Ela afagou o pescoço da ursa. Kumakyu gostou.
— Certo, Yuna. Como eu subo?
Kumakyu se ajoelhou. Eu subi primeiro, depois Milaine se acomodou atrás de mim.
— E então? — perguntei. — Confortável mesmo sem sela?
— E assim a viagem toda? — perguntou ela, encantada.
Sim. Meus ursões eram mais confortáveis que qualquer carruagem. Conforto suficiente pra você dormir sem notar os solavancos.
Seguimos rumo à cadeia de montanhas de Elezent, onde ficava o meu túnel. Começamos num trotezinho leve.
— Elas correm tão suavemente…
As duas ursas corriam lado a lado.
— Elas são rápidas também. Carruagens são tão lentas…
Carruagens? Pff, nem chegavam perto disso.
Algumas horas depois, chegamos ao pé das montanhas, onde meu túnel deveria estar.
— Achei que era por aqui… — murmurei. Chequei o mapa. Sim, deveria ser ali.
— Você se perdeu? — perguntou Cliff.
Antes que eu pudesse entrar em pânico, Kumakyu começou a andar sozinha.
— Kumakyu?
Mas ela e Kumayuru seguiram em frente como se estivessem dizendo “deixa com a gente”. Depois de alguns minutos, encontramos o túnel escondido pela vegetação.
Milaine riu.
— Parece que as ursas são mais espertas que você.
Dessa vez… não tive resposta.
Fizemos uma pausa antes de entrar.
— De qualquer forma, chegamos rápido graças às ursas — disse Cliff.
— Sim. Qualquer comerciante daria tudo por uma dessas.
— Aventureiros também.
Eles elogiavam minhas ursas enquanto bebíamos suco de laranja.
Eu não ligava quanto dinheiro me oferecessem: jamais me separaria delas. Cliff podia tentar roubar e ver o que acontecia.
— Ah, Yuna, pare de me olhar assim. Ninguém está pensando em roubar suas ursas. Eu poderia viver cem vidas tentando, e todas terminariam mal — disse ele, dando um tapinha de leve na minha cabeça.
Depois do descanso, Cliff e Milaine foram inspecionar a entrada.
— Esse é o túnel que você fez, Yuna? — perguntou Cliff, agora com seu Tom de Lorde Sério. Ele examinava tudo cuidadosamente, com Milaine ao lado. — Parece grande o suficiente para duas carruagens passarem ao mesmo tempo.
— Isso. Parece que sim.
— Sim — murmurou Cliff — maior do que eu imaginava.
— Mas acho difícil uma carruagem muito grande conseguir dividir espaço com outra indo no sentido contrário.
— Então deveríamos regular o tamanho das carruagens?
— Talvez — disse Milaine — mas isso pode virar um problema se alguém que não souber da regra aparecer.
— Nesse caso, que tal dividir por dias pares e ímpares? Assim só precisariam esperar um dia.
— Estamos nos adiantando, Cliff.
— Sim, tem razão. Primeiro precisamos ver o tamanho total do túnel e depois decidir conforme as coisas avançarem.
Talvez eu devesse ter feito um pouco maior?
— Também precisamos abrir espaço para um posto avançado — disse Cliff. — E contratar alguém para gerenciar o túnel.
Milaine olhou ao redor, para a vegetação densa.
— Também temos que definir o pedágio de uso.
— Quanto seria adequado?
— Normalmente decidimos com base no custo de construção do túnel.
Eles olharam para mim ao mesmo tempo.
— Vocês vão cobrar pedágio? — perguntei.
— Claro — disse Milaine. — Quem ofereceria algo assim de graça? Pense nos custos de manutenção. Sem falar no pessoal que teremos que contratar para vigiar aqui.
— Sim, seria um desastre se ladrões ou monstros resolvessem morar no túnel.
Ok, ela tinha razão… monstros provavelmente entrariam ali se deixassem tudo abandonado, então soldados e aventureiros eram necessários. E em ambos os lados do túnel. Um pedágio fazia sentido.
— E — murmurou Cliff, olhando para a escuridão — precisamos iluminar o interior com gemas de mana.
— Teremos que instalar gemas de luz e linhas de mana. Só isso já custa uma fortuna — disse Milaine.
Linhas de mana eram basicamente o que pareciam: canais para conduzir mana, como linhas elétricas na Terra. Até minha casa da ursa tinha isso — eu tocava uma gema normal na parede e ela transmitia mana para as gemas do teto.
— Ah, e claro — acrescentou Milaine — precisaremos instalar gemas de vento.
— Para um túnel desse comprimento, sim. Aliás, Yuna, qual é a distância daqui até o outro lado? Talvez tenhamos que criar um ponto de descanso no meio.
E os dois continuaram discutindo o futuro do meu túnel sem mim. É… acho que eu devia deixar os especialistas lidarem com esses detalhes.
Depois de uma pausa curta, seguimos para dentro do túnel. Criei uma luz de urso e fiz com que ela flutuasse à frente.
— Yuna — disse Cliff algum tempo depois — podemos ir mais devagar? Preciso verificar o estado do túnel e medir seu comprimento.
As ursas diminuíram o passo.
— Sem goteiras — observou Cliff, olhando para o teto. Parecia até uma pergunta.
— Não, usei magia para fazer a água escorrer por fora. Não vai pingar aqui dentro — expliquei. Queria algo mais “túnel legal” e menos “caverna úmida”.
— Isso facilita bastante — disse Milaine.
— Sim. Agora só precisamos ver quão resistente ele é. Teríamos um baita problema se desmoronasse.
— Isso não deve ser um problema se reforçarmos com gemas de terra — comentou Cliff.
Instalar gemas de terra deixava estruturas mais fortes. Muros de cidades grandes tinham isso.
— Então precisamos de gemas de terra além das de luz e vento — disse Milaine. — Isso vai custar caro.
Pedras de mana de luz para iluminar o túnel, pedras de vento para circular o ar e pedras de terra para reforçar o túnel… isso era tudo até agora, certo?
– Não é para isso que serve o pedágio? – perguntei.
Milaine balançou a cabeça.
– E como conseguiríamos os fundos iniciais? Um pagamento adiado não funcionaria exatamente para a guilda comercial.
– Não se preocupe – disse Cliff. – Nós temos o dinheiro.
– Então o problema é como garantir todas essas pedras de mana.
– Você poderia pedir para o guilda comercial coletá-las? – sugeriu Cliff.
– Bem… não é impossível – respondeu Milaine. – Mas eu ficaria preocupada com o colapso do mercado. E também preferiria evitar causar uma escassez.
– Então talvez pudéssemos encomendá-las da capital?
– Acho que isso seria mais sensato. Teríamos os mesmos problemas se pegássemos das cidades próximas, mas isso não seria preocupação na capital.
– Eu preparo os fundos. Você pode cuidar disso? – perguntou Cliff.
– Sim, não deve haver problema – disse Milaine.
Uau… construir um túnel era mais complicado do que eu imaginava. Nada daquela ideia de “cavar um buraco e pronto”, porque pessoas precisam de coisas como luz e oxigênio para ficarem confortáveis e, sabe… não morrerem. O mesmo valia para abrir uma loja — um amador como eu trabalhando sozinha só conseguia criar planos cheios de buracos.
Continuamos avançando enquanto os dois seguiam conversando, mas a saída simplesmente não aparecia. Também… o que eu esperava andando a passo de tartaruga? Né, Cliff?
– Seria bem assustador se a luz simplesmente apagasse no meio do caminho – comentou Milaine.
– Yuna, tem certeza de que podemos confiar nessa luz estranha e extravagante? – disse Cliff.
Estranha? Extravagante? Era claramente um ursinho adorável! Quer dizer… tá, eu também achei estranha por um tempinho quando a vi pela primeira vez, mas mesmo assim.
– Não se preocupem com isso – respondi. E se apagasse, eu faria outra.
– Já que instalar pedras de luz no teto seria trabalhoso demais, vamos nos virar colocando-as nas paredes – disse Milaine.
Sim… eu tinha feito o teto alto o bastante para carruagens passarem, então qualquer pessoa normal não alcançaria. Para instalar algo no teto, teriam que montar uma plataforma toda vez.
– Isso funcionaria bem melhor – disse Cliff. – Mesmo que um lado apagasse, ainda teríamos as luzes do outro lado acesas.
– Isso dobraria o custo, mas o que podemos fazer? – respondeu Milaine.
Eles avançaram bastante no planejamento, mas estávamos longe de ver o fim do túnel.
Cliff bocejou.
– Esse negócio simplesmente não acaba, não é?
– Bem, eu cavei direto pela cordilheira, mas ainda tinha muita distância para percorrer – expliquei.
– Então realmente deveríamos fazer um ponto de descanso – disse Cliff.
– Se fizermos isso – acrescentou Milaine –, precisamos colocá-lo exatamente no meio do túnel.
Eu senti os olhos dos dois em mim.
– Vocês querem que eu faça um? – perguntei.
– Yuna – disse Cliff –, você já escavou tudo isso. Comparado com isso, criar um pequeno ponto de descanso não é nada. Acho que o ideal seria exatamente no meio, como Milaine disse, mas precisaríamos saber o comprimento exato do túnel.
– Eu não faço ideia de quão longo ele é, mas posso dizer onde é o meio no meu mapa – respondi. Seria uma estimativa meio grosseira, mas boa o suficiente.
– Você consegue mesmo? – perguntou Cliff, surpreso.
– É só um pouquinho mais à frente.
Eu mandei o Kumayuru disparar enquanto analisava o mapa — um mapa que, aliás, só eu podia ver. Testei isso com a Fina antes.
– O ponto central é mais ou menos… – toquei um ponto no mapa invisível para eles – … aqui.
– Como você sabe? – admirou-se Cliff.
– É só uma aproximação, então não confiem tanto assim.
– Desde que seja mais ou menos correto, tudo bem. Pode abrir um espaço por aqui? – ele pediu.
Seguindo as instruções dele, empurrei a parede com magia de terra.
Cliff assobiou, impressionado.
– Incrível. Você cava buracos assim tão facilmente.
O tempo passou e logo eu tinha aberto espaço suficiente para várias carruagens descansarem.
– Fenomenal – disse Cliff, balançando a cabeça. – Mas se este é o centro, não temos tempo a perder. Yuna, odeio pedir isso, mas podemos acelerar?
Estava na hora. Disparamos pelo restante do túnel quase voando.
